27 de janeiro de 2010

Quando o desnecessário se torna essencial

Fazia muito tempo que não se viam, de modo que certas coisas permaneceram ocultas ou ainda, adormecidas. Se viu na possibilidade de reviver algo já anteriormente tentado a escrever sobre esses fatos que povoavam sua imaginação. Mas, era só um convite e nada mais. Um convite que poderia ser uma proposta pra lá de indecente, mas, que dizia respeito à tudo o que já aconteceu e que nem sempre foram satisfatórios. Enfim, não poderia esperar muito para que algo pudesse dar certo nesse sentido, afinal achava ainda que nada fosse se alterar, por mais que as coisas parecessem mudadas.

Não fazia mais expectativas de nada, enquanto os outros procuravam empregos e conseguiam de um modo ou de outro se estabilizarem. Não era o seu caso, uma vez que tinha uma proposta em mente que ia de encontro a toda e qualquer forma de estabilidade. Vivia uma eterna contradição, daquilo que lhe aguardava viver e aquilo que lhe era aguardado. Talvez fosse o ócio demasiado. Procurava formas de ocupar a mente com planos plenamente satisfatórios, mas que no fundo só lhe diziam respeito. Uma estranha forma de compreensão da realidade, das coisas que lhe rodeiam e do que poderia acontecer caso fosse diferente.

O grande problema era essa forma de não se conformar com as coisas, o que é diferente da conformidade de grandeza. Não falava em conformidade muito ou pouco, mas de algo que nasce do absurdo e da inconseqüência diária, da estética criada em abandono e que se molda a cada momento à indiferença cotidiana dos homens nesse espaço maldito criado por um sistema falido. Absolutamente nada estaria a seu acordo, uma vez sua revolta e raiva crescia e se refletiam em suas atitudes. No fim nada mais importava. Virou um kamikaze de si mesmo.

Passou a abortar toda e qualquer possibilidade de pensar em esperança ou em dias melhores uma vez que reconsiderou sua trajetória até ali e simplesmente chegou a essa conclusão. As vidas são formadas de falsas idéias, de falsas representações e sobretudo de esperanças. Viver nesse mundo significa um marca-passo que lentamente se extingue, cada dia é mais próximo da morte, é próximo de um abismo inexorável que, em tempos imemoriais jamais seria reconsiderado ou creditado. Males da modernidade.

A resignação se tornou um alento à indiferença diária, torna-se mais fácil ignorar do que encarar, ainda que existam meios de se pensar além dos muros das ideologias naturalizadas. Por outro lado, ainda tinha um encontro, que pode lhe suscitar toda e qualquer possibilidade de amor-próprio, ou auto-estima, ou ainda, um caso mal-resolvido.


Seria uma boa sinopse de um roteiro de intrigas a la Fellini, se não fosse mais uma tragédia diária vivenciada por boa parcela da população mundial.

14 de janeiro de 2010

Café simples-simples

Ele acorda mais antes do que sempre, e ela desperta de tanto que sacode, embora não deixe que perceba; é uma dessas mulheres desconfiadas das coisas do amor, desses de sono leve, dessas pessoas ativas que não ficam na cama até as onze horas de domingo; é uma mulher daquelas que apesar de estarem sempre impecavelmente asseadas nunca se atrasam.

Fica mais um pouco e sorri suavemente, acompanha-o por meio olho, entregue lisonjeada à espera, apesar da tanta-pouca magia das memórias dos dias do sempre recente, uma surpresa matinal, como um cafézinho gostoso simples-simples na cama, ou ele, de volta, num salto rápido, com a cintura dela entre suas coxas, desperte-a com um beijo faceiro, e uma cumprimentada de romance bonita e suave sussurrada.

Sim, dessa vez ele deve estar preparando algo, não é possível, dá pra ouvir os gritinhos estridentes dos talheres na cozinha, mas por outros tantos sinais em outros tantos dias como esse melhor é não esperar nada; a tristeza é grande, quase enorme, quando ela insiste em ficar na cama ainda mais - pois talvez tenha faltado tempo, e espera, espera, até que nada vem, depois de duas horas; e então, quando isso acontece, ela abre decididamente os dois olhos, volta pra si mesma, levanta da cama azeda e amarga já no passo duro, sem qualquer justificativa aparente, e em dias que se acorda assim o humor fica horroroso.

Será que ele ao menos pensa nisso quando acorda assim antes, quer dizer, pensa em fazer uma surpresa mas não se incomoda tanto, ou nem pensa, nem por um segundo? Consegue ver a mulher bonita, esguia e escolhida, deitada dormindo como se estivesse largada num campo de lírios brancos, e mesmo sem ter o impulso e a vontade de lhe fazer o capricho não se lembra que é bom, de vez em quando, pra uma mulher, fazer um agrado, um afago curto, um beijo matinal sussurado de romance?

Como se não fosse deselegante julgar algum, não é possível julgar esse homem. É um homem comum, ordinário, prático, honrado pelo condicionamento, com um trabalho digno, especializado e socialmente reconhecido, e os homens práticos assim não se incomodam com tais tipos de bilhetinhos de amor, e ele afinal, convenhamos que foi uma escolha, calma de tão calculada, sóbria e lúcida de tão política.

Ela não se lembra em que ponto foi que se perdeu, quando foi que desistiu, em qual homem irresponsável e boêmio tropeçou, selando seus poros, mas de qualquer forma a vida organizou-se de maneira que exato esse modo prático de operar essa vida vazia de quem está enfiado até os joelhos na terra, esse modo tacanho de viver distraidamente numa bolha que deram o motivo para que se metesse, definitivamente, com esse homem de borracha, em uma vida a dois, e sabia que nada mais podia ser feito, dali em diante, pois a guerra, perdeu afinal, pra si mesma.